ANTONIO CONTENTE

A inevitável civilização

17/02/2014 às 05:00.
Atualizado em 26/04/2022 às 22:45

Sempre que estou nesta ilha na foz do Rio Amazonas é inevitável que paire sobre mim a lendária figura do náufrago Robinson Crusoé. Aliás, quando comecei a organizar a vidinha aqui, muitos amigos me chamavam pelo nome do parceiro do índio Sexta-Feira. Devo, aliás, confessar que meu propósito, ao descobrir o pedaço de terra cercado de água por todos os lados, era realmente este: colocar-me, por períodos de tempo, absolutamente distante de tudo. Ou daquilo que, à lembrança do belo romance de Thomas Hardy, chamo pelo nome da esplêndida obra. Para quem não lembra recordo que “Longe Deste Insensato Mundo”, transformado em ótimo filme por John Schlesinger, conta a história de Bathsheba Everdene, que resolve enfrentar o desafio de tocar sozinha uma fazenda que herda no remoto e meio selvagem interior da Inglaterra d’antanho.Assim é que ao longo desses muitos anos em que venho para cá, experimento conflitos ou apenas vivo experiências que colidem com meus cuidados de não conspurcar o ambiente de princípio de mundo que me cerca. Nos primeiros anos de recolhimento, ainda no século passado, simplesmente recusava conviver com coisas que a civilização me permite. Poderia dizer que estava bem próximo de viver como o Robinson Crusoé do livro de Daniel Defoe. Mas, lá um dia, fiz minha primeira concessão trazendo velho rádio Transglobe, movido a seis pilhas das grandes. Na primeira vez em que o liguei na noite sem eletricidade e com a choupana ainda sendo organizada, senti que, de certa forma, violentava o ambiente. Mas ao perceber que o aparelho captava com nitidez a BBC de Londres e a Radiodifusão Francesa, acabei por concluir que não teria nada de mais aceitar meios de saber o que acontecia no insensato mundo. O casebre, por seu turno, ia tomando outras formas. Inicialmente palafita totalmente de madeira, palafita continua até hoje, mas possui cozinha de alvenaria, banheiros idem. E surgiram mais quartos, organizei pequena biblioteca, fiz adeguinha e tive, com o coração partido, de trazer uma geladeira. Movida a gás, naturalmente. Mantive o fogão a lenha, mas optei por ter também um de botijão. Agora, o conflito maior, foi com o som. Até que o poeta e jornalista José Maria Leal Paes, de Belém, que trabalhou largos anos no “Estadão” e JT, onde foi meu colega, presenteou-me com um alimentado por bateria de carro. Ao instalá-lo na choupana, fiz o teste durante o dia. Caso percebesse que as músicas poderiam assustar os pássaros, devolveria o aparelho. Mas aconteceu um milagre: ao se espalhar pelo ambiente a “Tocatta e Fuga em Ré Menor”, de Bach, um suí, passarinho lindo, de penas azuis cor de céu lavado, e que não canta, veio pousar no peitoril da sala de onde escapava a música. E ali permaneceu como se ouvisse, fato que tem se repetido ao longo dos anos até com outras espécies de emplumados. Os sabiás, por exemplo, adoram o “Canon”, de Johann Palchebel.Bom, com relação às coisas da chamada civilização que instalei na casa, os conflitos praticamente terminaram. Afinal as estrovengas que utilizo são absolutamente indispensáveis. Como a velha máquina de datilografar Remington portátil na qual batuco agora esta crônica. Porém, há outros conflitos com os quais convivo. Refiro-me às visitas que recebo de um sobrinho rico que mora na capital e usa para chegar até aqui moderníssima lancha que faz a travessia desde o continente em apenas três horas. Gosto da presença do moço, mas o ronco da máquina considero ser assustador para os pássaros. Todavia o que mais me violenta é que o moderno barco possui vasta traquitana eletrônica, inclusive computador. Que, é verdade, relutei em utilizar. Mas que hoje, até meio envergonhado por estar traindo a vida selvagem que me cerca, o faço sem moderação inclusive para passar crônicas para este Correio.Porém o mais acachapante recado que o mundo civilizado me mandou, aconteceu ontem pela primeira vez, em mais de 30 anos. Às 10 da manhã ouço um assustador ronco. Deixo a máquina de escrever e corro pra fora; espantado, avisto, passando baixíssimo sobre a baía, um enorme jato desses que atravessam o Atlântico. Não sei o que houve, não sei se desviou da rota ou se veio apenas me avisar que eu até posso ser Robinson Crusoé, mas nem tanto. Afinal, logo terei que estar dentro de um deles na minha mais constante rota. Entre os aeroportos de Val-de-Cans, em Belém, e Viracopos.

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