CECÍLIO ELIAS NETTO

A idade de ouro (falso)

23/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 04:31

Penso já ter morrido mil vezes. E renasci, fui renascendo. Ainda recentemente, morri outra vez. E vejo-me diante de outro renascimento. Penso que funciona mais ou menos assim: a vida acaba quando as coisas e pessoas — já conhecidas — perdem os seus traços. E recomeça quando — diante daquelas mesmas coisas e pessoas — descobrimos algo novo que nos tinha escapado. Seria como ler um livro na infância, lê-lo novamente na adolescência e, enfim, voltar a lê-lo na vida madura. O mesmo livro será sempre novo a cada época da leitura. Por que não assim, também, com a vida? Viver pode ser mudança de olhar. Por que não?De tão acostumado, pois, a morrer e a renascer, detesto a ideia de uma morte final. Detesto mas não tenho a ousadia de negá-la. Por isso, já planejei como renascer ou como ressuscitar. Combinei com minha mulher e filhos: o segredo está nas cinzas. Por isso, dependerei deles. Quero ser cremado e que minhas cinzas sirvam de adubo a dois pés de manacás que tenho no jardim. Assim, a cada flor que surgir, lá estarei eu, de alguma forma, nela. Quando ela morrer, morro novamente. E, na próxima Primavera, voltarei com ela. Será bonito. E divertido. Sem monotonias.Detesto, também, ser visto como alguém da “terceira idade”. Isso vem desde Pitágoras que comparou a vida humana às quatro estações do ano. Por genial tenha sido, não deixa de ser melancólico. E são, ainda, entendimento moderno, as tais quatro idades: infância, adolescência, fase adulta, velhice. Logo, a terceira idade seria a penúltima. E, por idoso — ora vejam! — se entende aquele com habilidades regenerativas limitadas, frágeis, exposto a mais enfermidades e, portanto, sempre a perigo. Como admitir com boa vontade tanto horror?Quem suporta, pois, aceitar a “terceira idade”, anúncio do fim definitivo? Não aceito. Por isso, quando me chamam de velho ou de idoso, respondo, orgulhosamente: “Sou antigo.” Pois o que há — mesmo no mundo de hoje — de mais cobiçado do que objetos da antiguidade? Por que não com pessoas? Ser antigo é, no mínimo, ser valioso. Vale a pena fazer de conta, né?Recuso-me, pois, à tal de “terceira idade” por uma questão, também, de esperteza. Prefiro a proposta de Santo Agostinho: as seis idades do homem acompanhando as seis idades do mundo. Seria o seguinte: Adão-Noé (infância); Noé-Abraão (puberdade); Abraão-Davi (adolescência); Davi-Babilônia (juventude); Babilônia-Cristo (idade madura); Cristo - fim dos tempos (velhice). E, finalmente, a sétima: a do repouso, como a história da Criação quando Deus descansou no sétimo dia. O que há de mais bonito, de mais alentador para um homem antigo? Logo, se me falarem de idade aceitarei apenas se for a “terceira” de Agostinho, a da adolescência. Um antigo ainda adolescente, não é uma bela ilusão?Mas não era bem sobre isso que eu queria escrever. O tema me irrita tanto que me permiti voar com a imaginação. É que embraveço quando me chamam de “tio”, de “idoso”, de estar na “terceira idade” e — mais mentirosamente ainda — alguém na “idade de ouro”. Isso é sacanagem, zombaria, falta de respeito. Que raio de ouro é esse que só faz estrago? É ouro falso, bijuteria, malandragem de camelô. “Idade de ouro” é, como se diz em minha terra, o “escolaro da vó”.Fiz parte, até recentemente, de um grupo de amigos que se reunia, semanalmente, para tomar chope e falar mal da vida alheia. Desistimos de “salvar o mundo” para nos deliciarmos com fofocagem. Eu insistia em estar na terceira idade de Santo Agostinho. Mas eles, os amigos, aceitaram estar na “terceira idade” de Pitágoras ou na “idade de ouro” do capitalismo esperto. Desisti. Caí fora. E, um a um, o grupo se dissolveu. Aliás, soube que, agora, todos eles ficam assistindo a novelas de televisão. Eu ainda resisto.Por que desisti? Por maus fluidos, por pessimismo, por atração pelo macabro de meus amigos da “idade de ouro”. Eles nunca admitiram ser ouro falso. Pois as conversas giravam apenas em torno dos novos medicamentos e tratamentos: para impotência, coração, fígado, rins, bexiga, urina, o escambal. Culminou quando um deles — mais novo do que eu — afirmou, após o quarto chope: “Sabe, eu ando com uma preguiça danada de fazer sexo. Até deixei de fazer.” O miserável estava impotente e arranjava desculpas.Essa falsa idade de ouro faz amigos se encontrarem apenas no facebook, do qual me afasto como o diabo da cruz. Ou, então, em velórios, enterros, farmácias, salas de recepção de médicos, de laboratórios, em hospitais. E isso é viver? Estou na adolescência agostiniana e quero ser chamado de gato. Meus amigos que se danem. Falei e disse.

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