Confesso nunca ter entendido o misto de alegria e tristeza que sempre me trouxe o Carnaval. Ao longo da vida, vi-os e os senti como dias ao mesmo tempo prazerosos e incômodos. Pois nasci, e vivi infância, adolescência, juventude — e boa parte da maturidade — envolvido pelos festejos carnavalescos. Cordões, blocos, corsos, o povaréu — todos e tudo de Carnaval passavam à frente de nossa casa, em nossa rua, em nossa calçada.Das janelas, víamos tudo. E todos nos viam. Amigos amontoavam-se nos espaços domésticos para ver a festa dos foliões e foliar com eles. As baterias paravam diante da casa homenageando meus pais. Porta-bandeiras, mestres-sala e bailarinos também. E meus pais retribuíam, oferecendo-lhes generosos goles de uma bebida que apenas eles sabiam fazer.Minha mãe — com seu copo de uísque ou de gim numa das mãos — ia para o meio da rua sambar com os blocos e cordões. E, logo em seguida, voltava à janela como se fosse a dama mais discreta do mundo, num fingimento que nos espantava. Eu a chamava de “Sarah Bernhardt”, tal a sua capacidade de interpretação. Especialmente — agora eu sei — como artista diante da vida. Pois ela se ria, ria-se de tudo, mesmo com soluços no peito e com lágrimas nos olhos. Hoje, não sei mais se ela o fazia para viver ou, apenas, para sobreviver.Ela era festeira. E, ainda recentemente, uma velha amiga me fez uma observação intrigante: “Nós a invejávamos. Como era possível haver tanta alegria numa só casa, numa só família, comandada por aquela mulher que não parava de rir?” Pois, para ela, quase tudo era motivo de comemoração, de celebração. Chegávamos a temer que ela fizesse graça até em velórios e sepultamentos. Enquanto isso, meu pai ficava ao lado — como se para protegê-la — apenas rindo, admirando-a e admirando-se, acho eu.No Carnaval, porém, minha mãe se superava. Enfeitava a casa, comprava confete e serpentina, até mesmo o proibido lança-perfume, que ela adquiria da moçada amiga da família. Depois que os cordões passavam — com ela inventando passos entre os sambistas — lá se ia a mulher aprontar-se para os bailes nos clubes, levando-nos com ela. Até os netos a acompanhavam. Caprichava em suas fantasias, uma para cada noite, não permitindo que ninguém as visse antes de ela vesti-las. Irreconhecível, entrava no clube espalhando alegria, dançando e — imaginem! — pronta para participar dos dois principais concursos: o de fantasia mais original e de maior foliona. Ganhava quase sempre.O último Carnaval de sua vida aconteceu três meses antes de ela morrer. O câncer a apanhara desprevenida. Médicos deram-lhe pouco tempo de vida. Mas ela resistiu e resistiu, desafiando a compreensão de todos. Naquele último carnaval, ela estava enfraquecida na cama, o corpo pequenino e pressentíamos ter chegado ao fim. No entanto, numa reação espantosa, ela fez um pedido: “Quero ir ao clube. Prometo que fico sentadinha à mesa e não vou dançar nem dar trabalho”. Foi impossível não lhe satisfazer o desejo. Minhas irmãs maquiaram-na, ajeitaram-lhe a peruca, puseram-lhe trajes vistosos, que ela mesma escolheu. E, quase carregada, nós a levamos ao clube, a poucos metros de nossa casa.Quando os conhecidos a viram, a choradeira foi geral. Ninguém acreditava que ela, quase à morte, estivesse ainda esbanjando alegria. Por meia hora, ela ficou sentadinha à mesa, sorrindo, sorrindo e, depois, arfante, pediu para ser levada embora. Então, as lágrimas começaram a escorrer-lhe dos olhos, manchando-lhe a maquilagem. Era um adeus. Ao Carnaval. E à vida.Neste Carnaval, voltei a lembrar-me dela. Aliás, não há dia em que eu não pense nessa mulher, rindo de mim para mim. Nossas lembranças, as dos filhos, são sempre acompanhadas de risos, de alguma brincadeira dela, de alguma piada, de alguma surpresa das muitas que ela nos fazia. Lembrei-me, pois, dela também neste Carnaval. Mas algo novo aconteceu. Pois tudo me ficou mais claro, mais nítido, mais revelador: minha mãe ria para não chorar; minha mãe esbanjava alegria para espantar a tristeza. De família milionária — como que uma princesa árabe — ela conheceu a miséria, as ruínas. Perdeu três filhos, mortos, todos eles, ainda crianças, em circunstâncias trágicas. Mas nunca transmitiu à família — filhos e marido — a dor que a rasgara por dentro.Ela foi a foliona da alegria triste. Brincava para sufocar a dor. Ria para afogar o sofrimento. E, de sua vida, fez carnavais, impedindo a vitória dos funerais. Amélia, minha mãe, foi, sim, mulher de verdade. Entendeu o teatro da vida. E, em cada peça, assumiu seu papel com maestria.