GUSTAVO MAZZOLA

A fazenda

07/08/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 06:21

Não tire conclusões precipitadas! Você está certo de que o assunto aqui é sobre A Fazenda, aquele badalado reality show da 'TV Record'? Bem, vou lhe adiantar: a nossa fazenda é outra, mas lhe asseguro, igualmente interessante, saudável, muito menos delirante. Vamos fazer um passeio por uma autêntica propriedade rural do Interior paulista, alguns registros peculiares de sua rotina simples, rica em qualidade de vida. Na verdade, um mundo desconhecido para muita gente da cidade, de modo especial para crianças que ainda não tiveram contato com a natureza no seu estado mais puro. Imagine que o sobrinho de um amigo, ao topar com uma galinha no terreiro de um hotel fazenda perto de Jaguariúna, acabou chamando a penosa de Knorr. É possível?Guardo comigo muitas lembranças do tempo em que, quando menino, vivi um tempo na antiga Fazenda Estrela, perto de Pratânia, uma pequena cidade entre São Manoel e Avaré. A labuta do dia começava bem cedo, na sede, na colônia, no terreiro com o pessoal já “virando” o café para secar, nas áreas de plantação. Levantávamos de madrugada, acordados pelos ruídos do gado no curral, os empregados conversando naquele jeito bem deles. Antes de qualquer coisa, íamos para lá com os nossos copos, prontos para pegar o leite direto da vaca, quentinho, saboroso.Quando era dia de marcação do rebanho, a coisa parecia uma festa: os vaqueiros derrubavam o animal depois de laçá-lo dentro da mangueira. Então, vinham com um bastão com a inicial da fazenda em brasa na ponta e, literalmente, gravavam a marca na anca escolhida. Dava para se ouvir o fritar dolorido, num espetáculo — para nós — do mais requintado sadismo.Um dia chegou a energia elétrica. Técnicos em eletricidade instalaram um dínamo aproveitando uma pequena queda d’água perto da mangueira, e a luz — bem fraquinha — passou a iluminar toda a área interna e externa da sede da fazenda. Foi quando o administrador, meu tio, nos surpreendeu com a grande novidade: um aparelho de rádio. A partir daí, sentávamos todos nos cadeirões da sala de estar, à noite, para ouvir os programas da Rádio Nacional do Rio de Janeiro. Todos atentos à Hora do Brasil.E as conversas do pessoal de casa e das fazendas vizinhas, nas noites de sábado? Em geral, comentários sobre o tempo, o andamento do plantio, embora, às vezes, o assunto caminhasse para a política nacional, tudo com base nas notícias do Repórter Esso, noticiário ouvido sempre com muita atenção. Não demorava muito e a conversa derivava para casos de assombração, gente que havia ouvido vozes misteriosas no estradão, o sinal luminoso no meio do campo (era o fogo-fátuo, que não conheciam), histórias de lobisomem e por aí afora. Se a conversa ficava meio chocha, corríamos para a cozinha onde, ao lado do grande fogão de lenha, as mulheres tricotavam as roupas de frio e a vida de muitos dali mesmo.Aliás, sobre as mulheres, de vez em quando, acompanhávamos todas elas em passeios de fim de semana, a pé, quando faziam visitas a famílias conhecidas das fazendas e sítios vizinhos. Aqueles mutirões de mulheres caminhando, juntas, pelas estradas de terra, conversando, rindo, deixaram lembranças jamais esquecidas.Um momento importante na rotina da fazenda era vinda anual do inspetor de ensino, que aparecia ali para avaliar a meninada da escolinha. Todos o tratavam como uma verdadeira autoridade: era Seu Caldeira, pra cá, Seu Caldeira pra lá. Um cafezinho? Almoça com a gente? Outra visita de todos os anos era a dos compradores de café. Mas esses mereciam um tratamento bem profissional: detalhes do negócio acertados no escritório, avaliação do produto, pagamentos etc. Depois, carregavam tudo em grandes caminhões (novidade por ali, pois, motorizado só existia mesmo na fazenda um velho trator), e seguiam ruidosamente pelos caminhos de volta à cidade.Em dias de festa, São João, por exemplo, a movimentação já começava de manhã. O carro de boi ia arrastando para dentro da mangueira grossas toras, que eram dispostas em uma grande caieira. Depois de acesa a fogueira, queimaria durante toda a madrugada. Mas, antes, às seis da tarde, todos se reuniam em frente à tulha para o levantamento da bandeira de São João. Soltavam fogos, batiam palmas, alguns rezavam pedindo que o ano fosse proveitoso, uma boa colheita. A festa continuava noite adentro com o baile tipo arrasta-pé, com violeiros, sanfona, bandeirinhas coloridas, as moças de vestidos estampados, os rapazes nas suas melhores fatiotas.Alta madrugada, quando já chegava o novo dia, a caieira tinha virado um monte de brasas, momento certo para as corridas dos fiéis fervorosos por cima delas. Quase ninguém se queimava. Era muita fé!

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