JOSÉ ERNESTO

A esquina

27/07/2013 às 00:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 07:28

Aos domingos por volta de 7,30h ela estava sempre lá. Na esquina da Bernardino de Campos com a Vicente de Carvalho, próximo ao poste que suporta as placas com os nomes das ruas. Sempre acompanhada de Buck, seu escudeiro. Esse fiel acompanhante tinha um pedigree que não deixava duvida, era um vira-lata puríssimo. Eu passava por lá a caminho da feira da Portugal. Parava, conversava um pouco, perguntava o que ela precisava e ela sempre me oferecia um café. Eu, com minha pressa capricorniana, frequentemente não aceitava o convite. Nessas conversas, que por se tratar de domingo poderia chama-los de papos da madrugada, suas perguntas invariavelmente versavam sobre seus adorados netos a Maria Paula (que ela chamava de “minha boneca”), o José Ernesto (o “Tatinho”) e o Eduardo (o “Dudu”).Ela nos deixou em 2011, mas em nossa memoria sua presença é constante. Mãe, esposa, avó, bisavó e sogra amorosa e atenciosa. Dedicada à família. É difícil lembrar-me somente de uma qualidade marcante da dona Wilma, minha mãe. Eram muitas. Casou-se aos 19 anos e com vinte anos trouxe-me ao mundo. Amamentou-me por dois anos. Sempre esteve ao meu lado ouvindo-me e estimulando-me. Com meu pai, apesar de ambos terem somente o curso primário, valorizaram o saber e com muito sacrifício levaram a frente o ideal de ter o filho com curso superior.Lembro-me de algumas de suas alegrias (não quero lembrar–me das tristezas, que foram varias), mas com certeza entre as maiores, não posso esquecer-me de quando fui aprovado no vestibular da Faculdade de Medicina de RP, de quando me graduei em Medicina e de quando seus netos nasceram. Deles foi a segunda mãe. Dividia com meu pai a tarefa quase que diária de busca-los na escola. Sempre alegre. Admirava e elogiava os progressos e as artes diárias dos netos. Cozinheira competente ensinou-me alguns segredos, como fazer o arroz “soltinho” e o feijão “com caldo grosso”. É inesquecível o aroma delicioso que invadia sua casa quando ela temperava o feijão e isso ela o fazia todos os dias porque o “seu” Santos, meu pai, não comia “feijão amanhecido”. Eu e meus filhos sempre nos lembramos de seu molho de tomate, de seu bolo “melecado e lambuzado” de chocolate, das roscas trançadas e com goiabada e de seu famoso pastel de carne com as bordas arredondadas. Ela sempre contava com entusiasmo para meus amigos e para as visitas casos de minha infância, apesar de já passadas varias décadas.Recentemente, depois de sua partida, organizando seus pertences encontrei objetos que ela guardava como relíquias: um recorte de jornal de 26 de Dezembro de 1945 com a coluna publicada pelo cartório, registrando meu nascimento; o jornal de janeiro de 1965 com a lista dos aprovados no vestibular da FMRP e o de Agosto de 1968 com a reportagem extensa sobre a morte do cantor Vicente Celestino, de quem foi admiradora desde a adolescência e... meu coto umbilical mumificado, embrulhado cuidadosamente em uma folha de papel de seda. É no mínimo intrigante olhando e pegando aquele objeto, hoje seco e retorcido, imaginar que ele nutriu-me por nove meses.Aos domingos a caminho da feira da Portugal passo por aquela esquina por volta das 7h30. Ainda fico emocionado e até tenho a fantasia de encontra-la com o Buck segurando pela coleira, mas depois de alguns metros, já em frente do Hospital São Lucas, a realidade e a pergunta: porque eu não aceitei mais frequentemente aquele café que ela me oferecia todos os domingos com tanto carinho? A vida é tão curta e por certo alguns minutos, ou horas, não atrasariam e nem me deixaria sem algum produto da feira.Ela está sempre presente em minhas lembranças pela dedicação à família, pelo bom humor, pela correção e pela alegria nas vitórias do Botafogo e pelo prazer que sentia ao saborear no almoço dominical uma taça de vinho espumante, que ela adorava.A esquina para mim ficou vazia e sem graça.

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