CECÍLIO ELIAS NETTO

A era dos pós-humanos

Cecílio Elias Netto
17/05/2013 às 05:06.
Atualizado em 25/04/2022 às 15:43
ig-cecílio (AAN)

ig-cecílio (AAN)

A mulher — ao ver o dono do armazém espancando um cachorro para afugentá-lo do local — gritou, indignada: “Pare com isso. É desumano!” Vendo a cena e ouvindo a mulher, surgiu-me como que uma luz: ora, se as pessoas identificam o que é desumano, devem, em contrapartida, reconhecer o humano. Ou não?

Tem-me ficado, no entanto, a impressão cada vez mais sólida de estarmos perdendo a consciência do que seja o ser humano, sobrando-nos apenas intuições ou lembranças. Tanto assim é que intelectuais já falam em era dos “pós-humanos”. Como pode haver o pós-humano se não conseguimos sequer, ainda, atingir a era dos humanos? Pois o humano é uma construção, um ideal, um processo, um ser que se aperfeiçoa em valores éticos, espirituais, culturais, morais. O significado mais nobre de humanidade é de ela ser uma fraternidade, uma sociedade universal governada pela lei moral. Se assim não for, o homem será apenas um primata diferenciado. E a humanidade, tribos de primatas diferenciados.

De alguma forma, no entanto, pode-se saber, agora, que o humano existe a partir do reconhecimento do desumano. Se guerras são desumanas, a paz é humana. Se a violência é desumana, a civilidade é humana. Ou é assim ou, então, estaremos falando apenas superficialidades, palavras sem sentido. Aliás, a degeneração e a decadência de uma sociedade e de um povo começam com um estilo de vida ao nível das banalidades e vulgaridades do cotidiano, com a prevalência do profano sobre o sagrado. É quando — pelas constantes negações à moral vigente, a valores e normas instituídos — se dá o rompimento do contrato social.

O reconhecimento do humano não se dá apenas na dimensão religiosa. Ele acompanha os povos desde os primórdios da civilização, quando a reflexão brotou na inteligência do hominídeo. Os gregos, no seu fecundo iluminismo, deixaram-nos uma definição de homem que ainda permanece: “animal racional”, “animal capaz de ciência.” Bastaria isso, pois, para a razão humana saber indicar o útil e o pernicioso, o justo e o injusto. Mas, para ser humano, não basta apenas a razão, que esta pode ser manipulada, desfigurada, transfigurada.

O próprio Sartre — com sua visão existencialista de mundo — expôs sua percepção do humano, após algumas observações preliminares: “Ser homem é tender para Deus; ou, se assim preferem, o Homem é fundamentalmente desejo de ser Deus.” Seria uma nostalgia? E Feuerbach, filósofo idealista: “O Deus do Homem é o ser do Homem.” Continuaríamos, pois, ainda querendo ser deuses? E, com isso, transformamo-nos em feras demoníacas?

Não é possível, pois, falar-se em uma “era de pós-humanos” se não conseguimos — até nossos dias e com toda a nossa ciência — ser sólida, plena e conscientemente humanos. Ao contribuirmos para se consolidar uma sociedade consumidora, admitimos a própria decadência. Pois sociedades consumidoras são decadentes. Consumir não é produzir, mas dar fim às coisas. O seu contrário é o cultivar, o significado de cultura. Mas numa sociedade de valores descartáveis nada se cultiva. A não ser vaidades pessoais, egoísmos, individualismos perniciosos, cobiças pérfidas.

Talvez, tenhamos regredido, sem o perceber, a uma “era dos pré-humanos”, que é a do animal domesticável, domável. As banalidades do cotidiano — com vulgaridades e superficialismos — levaram-nos a um permanente estado de guerra, sem sequer saber quem são os inimigos. Ao se perder a noção da relação amigo/inimigo, perde-se a confiança, abrindo espaço à insegurança destrutiva. Vizinhos não se falam; crianças agridem professores, não respeitam pais e avós; o outro é um adversário ou um competidor. A mercantilização do mundo mercantilizou também as pessoas. Elas valem não pelo que são, mas pelo que podem custar, dar lucros, produzir. Ora, aquela mulher do armazém — diante desse panorama quase simplório — haveria de dizer: “Isso é desumano.” Logo, não é humano.

O incrível é que, no latim antigo, a palavra “humane”, um advérbio, significava “mansamente”. O verdadeiro humano, pois, teria que viver de maneira “humane”. Pois o homem — o “húmus”, terra — é uma construção que, como o barro, que se plasma a pouco e pouco. Pode-se moldá-lo com formas belas e harmoniosas, mas, também, com desfigurações e feiúras. O humano tende a uma dimensão mais nobre, a que beira o divino. É a vocação para a busca do belo, não para anular-se no feio e no torpe.

Falar-se, pois, em “era dos pós-humanos”, é afirmar o colapso da própria humanidade. Será a era da prevalência dos robôs. E isso significará, enfim, que, em tempos descartáveis, o “pré-humano” foi, também, descartado.

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