“A Escola EDEM do Rio de Janeiro, situada no Largo do Machado, mostra sentido de atualidade e de solidariedade, ao promover a III Festa Literária dedicada à Africa nos dias 23-26 de outubro. Mais da metade dos brasileiros tem alguma raiz afro. E todos nós somos africanos, pois o ser humano apareceu pela primeira na história da evolução na Africa. Lá irrompeu a consciência, a inteligência e a capacidade do cuidado. Da Africa os seres humanos se espalharam por todos os Continentes. Mas nunca devemos esquecer: lá, na Africa, estão as nossas raízes. Revisitando as raizes nos nos humanizamos e também rejuvenescemos. Mas uma sombra escura pesa sobre todos nós não afrodescendentes. Nós escravizamos milhões de africanos. À força os trouxemos da Africa e os vendemos como “peças” a serem negociadas nos mercados negreiros. E os fizemos trabalhar como animais de forma tão pesada que grande parte morria de cansaço com poucos anos de vida. Quase tudo o que existe no Brasil colonial foi feito pelos escravos afrodescentendes. Temos uma dívida a pagar para com eles e nunca a temos até hoje pago. Essa Feira representa um gesto simbólico de gratidão e de reconhecimento por tudo o que trouxeram de positivo para a nossa cultura nacional, desde a culinária, a religiosidade, a alegria de viver, a ginga e a música. Deixaram-nos uma palavra que significa toda uma fiiosofia de vida e que é usada em muitas partes do mundo. É a palavra UBUNTU. Ubuntu em africano significa:”eu sou através de você” ou “nos somos se mantivermos sempre boas relações uns para com os outros”. Se isso fosse seguido hoje, o mundo seria totalmente diferente. Mas eles nos deixaram a inspiração e o desafio de vivermos em redes de relação includentes. Há anos fiz um texto, lembrando a liturgia da Igreja Católica da Sexta-feira Santa. Neste dia lembramos que Jesus foi preso, torturado e pregado na cruz. E ele nos deixou um lamento de tristeza, recordando-nos todo o bem que nos fez e nós em troca lhe retribuimos com ofensas e com a crucificação. Algo semelhante fizemos e estamos ainda fazendo para com a população de nossos irmãs e irmãs afrodescendentes. Eis o texto: “Ouvem-se ainda os ecos dos lamentos de cativeiro e de libertação, vindos das senzalas, hoje das favelas ao redor de nossas cidades: “Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me! Eu te inspirei a música carregada de banzo e o ritmo contagiante. Eu te ensinei como usar o bumbo, a cuíca e o atabaque. Fui eu que te dei o rock e a ginga do samba. E tu tomaste do que era meu, fizeste nome e renome, acumulaste dinheiro com tuas composições e nada me devolveste. Eu desci os morros, te mostrei um mundo de sonhos, de uma fraternidade sem barreiras. Eu criei mil fantasias multicores e te preparei a maior festa do mundo: dancei o carnaval para ti. E tu te alegraste e me aplaudiste de pé. Mas logo, logo, me esqueceste, reenviando-me ao morro, à favela, à realidade nua e crua do desemprego, da fome e da opressão. Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me! Eu te dei em herança o prato do dia-a-dia, o feijão e o arroz. Dos restos que recebia, fiz a feijoada, o vatapá, o efó e o acarajé: a cozinha típica da Bahia. E tu me deixas passar fome. E permites que minhas crianças morram famintas ou que seus cérebros sejam irremediavelmente afetados, infantilizando-as para sempre. Eu fui arrancado violentamente de minha pátria africana. Conheci o navio-fantasma dos negreiros. Fui feito coisa, “peça”, escravo. Fui a mãe-preta para teus filhos e filhas. Cultivei os campos, plantei o fumo para o cigarro e a cana para o açúcar. Fiz todos os trabalhos. E tu me chamas de preguiçoso e me prendes por vadiagem. Por causa da cor da minha pele me discriminas e me tratas ainda como se continuasse escravo. Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me! Eu soube resistir, consegui fugir e fundar quilombos: sociedades fraternais, sem escravos, de gente pobre mas livre, negros, mestiços e brancos. Eu transmiti, apesar do açoite em minhas costas, a cordialidade e a doçura à alma brasileira. E tu me caçaste como bicho, arrasaste meus quilombos e ainda hoje impedes que a abolição da miséria que escraviza, continue comorealidade cotidiana e efetiva. Eu te mostrei o que significa ser templo vivo de Deus. E, por isso, como sentir Deus no corpo cheio de axé e celebrá-lo no ritmo, na dança e nas comidas sagradas. E tu reprimiste minhas religiões chamando-as de ritos afro-brasileiros ou de simples folclore. Não raro, fizeste da macumbacaso de polícia. Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me! Quando com muito esforço e sacrifício consegui ascender um pouco na vida, ganhando um salário suado, comprando minha casinha, educandomeus filhos e filhas, cantando o meu samba, torcendo pelo meu time de estimação e podendo tomar no fim de semana uma cervejinha com os amigos, tu dizes que sou um negro de alma branca, diminuindo assim o valor de nossa alma de negros, dignos e trabalhadores. E nos concursos em igual condição quase sempre sou preteerido em favor de um branco. Porque sou negro. E quando se pensaram políticas públicas para reparar a perversidade histórica, permitindo-me o que sempre me negaste, estudar e me formar nas universidades e assim melhorar minha vida e de minha família, a maioria dos teus grita: é contra a constituição, é uma discriminação, é uma injustiça social. Mas finalmente a Justiça agora nos fez justiça e nos abriu as portas das universidades federais e também de algumas particulares. Meu irmão branco, minha irmã branca, meu povo: Que te fiz eu e em que te contristei? Responde-me!” “Responde-me, por favor”. E nós brancos, os que dispomos do ter, do saber e do poder, geralmente calamos, envergonhados e cabisbaixos. É hora de escutar o lamento destes nossos irmãos e irmãs afrodescendentes, somar forças com eles e construir juntos uma sociedade inclusiva, pluralista, mestiça, fraterna, cordial onde nunca mais haverá, como ainda continua havendo no campo, pessoas que se atrevem a escravizar outras pessoas. Oxalá possamos gritar: “escravidão nunca mais”. E enxugando as lágrimas podemos dizer como no Apocalipse:”Tudo isso passou”.