SEM IDENTIDADE

A difícil escolha de viver à margem da sociedade

Mayra, moradora de rua, tatuou telefone no corpo para garantir que seja reconhecida

Fábio Gallacci
13/04/2013 às 05:09.
Atualizado em 25/04/2022 às 20:31
A moradora de rua Mayra tatuou telefone no braço para ser identificada (Edu Fortes/AAN)

A moradora de rua Mayra tatuou telefone no braço para ser identificada (Edu Fortes/AAN)

O medo de morrer na rua e não ser identificada fez com que Mayra, de 35 anos, tomasse uma atitude inusitada. Ela tatuou o telefone da mãe para que, em caso de seu corpo ser localizado em algum lugar, a polícia tenha quem procurar. O número foi tatuado nas nádegas. "Peguei a ideia de uma amiga que tenho em Santos; ela tatuou o número do RG no peito. Assim, eles vão ter para quem ligar se acontecer alguma coisa, né?" , diz a moradora de rua, que vive com seu companheiro que todos na vizinhança conhecem apenas como Alemão e uma cadela fiel embaixo de uma ponte na Avenida Orosimbo Maia, região central de Campinas. De seu lar improvisado, M. espera que ninguém precise ver a sua tatuagem tão cedo. Ela luta para se manter viva, apesar de tudo. E ainda encontra motivos para sorrir.

Viciada em crack e soropositiva, ela passa seus dias a pedir dinheiro nos faróis para comer e sustentar o vício. Não há qualquer constrangimento em admitir o destino das moedas que recebe. Ela pede, não rouba.

Em cima de seu "lar" passam milhares de veículos todos os dias e pouca gente imagina que uma família viva ali. O local tem colchões, roupas, cobertores, utensílios de cozinha e uma cobertura de lona que garante o mínimo de privacidade. A cadela é brava e não permite aproximação, a não ser que o casal a faça entender que os visitantes são bem-vindos ali.

Por vergonha e receio, Mayra não permite que a tatuagem seja fotografada. A reportagem insistiu por diversas semanas tentar mostrar o número do telefone de forma discreta, publicável, mas ela foi irredutível em não mostrá-lo para a câmera. Sendo assim, seu direito de expor ou não o corpo foi respeitado.

O contato com sua família parecer ser esporádico. Há anos que sua vida é a rua. O abrigo improvisado embaixo da ponte traz a liberdade que uma casa de apoio talvez não possa dar. Fazer seus próprios horários, manter costumes, viver a vida que escolheu para si. Ali, com as margens do Córrego Serafim como morada, Mayra só teme a chuva e a violência que pode surgir de qualquer forma e sem avisar. É preciso ficar atenta para a elevação da água durante as madrugadas, o que pode significar a perda de seus objetos ou a morte. A cadela também não é brava por acaso. Ele está ali para proteger o casal de qualquer problema. É parte da família de Mayra e Alemão.

Ela conhecia de vista um homem, também morador de rua, que apareceu morto a poucos metros dali em setembro do ano passado. "Ele vivia em uma ponte mais para frente da avenida, sozinho. Não tive contato, só via ele andando por aí de vez em quando" , lembra. A situação é a mesma quando a reportagem questiona outras pessoas sobre Mayra na área onde ela vive. Muitos na região da Orosimbo Maia com a Avenida Brasil a conhecem de vista, alguns já trocaram palavras rápidas, mas ninguém sabe o seu nome.

Os trocados que ganha também garantem em alguns momentos um marmitex, um café com leite em uma padaria, um litro de álcool para cozinhar no seu canto. Tudo dividido com o companheiro e com o animal de estimação. O cabelo mal-cuidado e o rosto envelhecido mostram a dura realidade da rua e da entrega de sua juventude para uma droga que, na maioria das vezes, não oferece escapatória. O crack a acorrenta como faz com tantos outros em Campinas.

Mesmo assim, Mayra é vaidosa. As unhas compridas das mãos e o cabelo pintado provam que sua vontade de ficar bonita não foi embora, que ela segue firme na tarefa de existir.

Dia de princesa

Ela conta que, há algum tempo, um grupo de pessoas procurou o casal para dar um "dia de princesa" para a cadela da família. Lá foi o bicho de estimação para o pet-shop, onde ganhou banho, tosa e mimos. O cachorro ganhou atenção, já Mayra e Alemão continuaram na mesma situação.

ENTREVISTA - Paulo Mariante - Direitos Humanos

A presença de pessoas em situação de rua é quase tão antiga quando a falta de interesse do Poder Público em tentar resolver de forma concreta a questão. A troca da família por uma vida sem qualquer estrutura, ao contrário do que muitos insistem em pensar, não é uma escolha fácil, não é coisa de "vagabundo" ou "drogado" . É fácil apontar, o complicado é ter a consciência de que todos são responsáveis pela solução. O presidente do Conselho Municipal de Direitos Humanos e Cidadania de Campinas, Paulo Mariante, concorda com isso e defende que a população seja mais atuante na cobrança por uma melhor política social por parte de todas as esferas de governo. Leia, a seguir, a sua entrevista:

iG Paulista - A série Sem identidade apontou algumas questões que costumam passar despercebidas. Muitas pessoas simplesmente não existem para grande parte da sociedade.

Paulo Mariante - A série mostra o quanto a gente, como nação, ainda está devendo. Nós não cumprimos a nossa tarefa de garantir o mínimo de dignidade para as pessoas. Às vezes, eu converso com gente que vem com aqueles argumentos de que os outros estão na rua porque não trabalham, são vagabundos, estão lá porque é mais fácil. Muitos não entendem que essas pessoas (em situação de rua), pelo seu processo de vida, tiveram todos os seus vínculos destruídos. Muitos enfrentaram situações para as quais não estavam preparados. Geralmente, a pessoa está na rua porque o vínculo familiar foi rompido. As famílias não conseguem entender o que essa pessoa vive.

Qual o papel da sociedade em geral nisso?

Espero que essa série sirva para que as pessoas - apesar do nosso cotidiano difícil - tenham mais sensibilidade para entender que quem está ali na rua não é "culpado" por isso. Isso é decorrente de todo um conjunto de problemas que temos dificuldade de entender. É por isso que eu acho que os profissionais da assistência social e da psicologia que atuam com a população de rua têm muito a ensinar a todos nós porque essas pessoas são, muitas vezes, o único espaço de diálogo, além das entidades que fazem esse trabalho voluntariamente, para que possamos conhecer um pouco a realidade. Olhamos a pessoa na rua e, geralmente, fazemos um julgamento sem saber o que ela passou. A série de reportagens do Correio tem o ponto positivo de levantar essa questão. Todos nós somos responsáveis pelo fato do Estado brasileiro não ter conseguido ainda dar conta desse problema.

A situação é grave. Qual caminho tomar na tentativa de, pelo menos, minimizar o problema?

Como não conseguimos construir até hoje uma rede social de proteção que de fato dê conta do acolhimento a essas pessoas, elas acabam ficando na rua. Eu não sou um especialista em assistência social, a minha experiência é pela militância na questão dos direitos humanos, mas quando conversamos com as pessoas mais atuantes, elas mencionam os limites dos equipamentos como um obstáculo. Por exemplo: um abrigo com um determinado conjunto de regras. Quando a pessoa está nesse estágio (na rua), decorrente de uma situação limite, não é fácil colocá-la em um local que tem horários para entrar, sair, dormir, comer... Não estou dizendo que seja um absurdo isso existir, mas acaba oferecendo uma limitação para acolher pessoas nessas condições. Isso envolve uma complexidade muito grande. Estou absolutamente convencido de que essas pessoas na rua são um dos maiores desafios para a política de direitos humanos do nosso tempo. São válidas as iniciativas governamentais de ampliação de postos de trabalho, a incorporação de pessoas ao mercado de trabalho formal, a questão da incorporação ao consumo - não que isso, necessariamente, garanta uma cidadania plena -, mas essas pessoas estão à margem da margem. São os deserdados completos da nossa sociedade. Ainda não conseguimos dar as respostas suficientes.

O Brasil vive uma fase de desenvolvimento econômico. Por que esse mesmo desenvolvimento não atinge quem está nas ruas?

Um país que ostenta ser a 6ª economia do mundo deveria também se esforçar para ostentar uma condição de dignidade social da pessoa humana nessas mesmas condições. Isso ainda não é real. Se olharmos Campinas, quando afirmamos que não há o número adequado de CAPs (Centros de Atenção Psicossocial) nós não estamos criticando o atual governo ou os anteriores, mas o Estado brasileiro que está devendo. Política pública tem que ser política de Estado e não de governo. Mas a responsabilidade também é de todos. Se ostentamos uma imagem de situação econômica avançada, está faltando do Poder Público o esforço, na medida adequada, para atender essas situação de vulnerabilidade nas ruas. É uma cobrança sobre os poderes públicos no sentido do que eles deveriam fazer e também sobre a sociedade civil. A maior tarefa da sociedade civil é cobrar o Poder Público. É preciso perenidade nas políticas sociais.

Cadastro Nacional de Pessoas Desaparecidas

Como ajudar:

- Se você entende um pouco de internet e de web, pode ajudar as pessoas que não entendem, ou que não têm acesso à internet, a se cadastrarem na página do CNPD e fazer o tratamento da imagem da pessoa procurada para envio da foto.

- Se você é web master ou web designer, de um site ou de um portal, pode colocar um link ou um banner do CNPD em seu site ou na página de seu cliente, ajudando a divulgar o CNPD e outras pessoas que possuem um parente ou um conhecido desaparecido

- Você pode se cadastrar no site, informando seu endereço e telefone para ajudar na busca de uma pessoa desaparecida.

- Na divulgação de pessoas desaparecidas colocando cartazes em delegacias de polícia, hospitais, pronto socorros, instituto médico legal, e locais de grande fluxo de pessoas.

OBS: O CNPD não envia nenhum tipo de correspondência, não nomeia delegados e não envia boletos de cobrança.

Site: www.cnpd.org.br

Assuntos Relacionados
Compartilhar
Correio Popular© Copyright 2024Todos os direitos reservados.
Distribuído por
Publicado no
Desenvolvido por