FABIANA BONILHA

A deficiência cronológica

Fabiana Bonilha
01/06/2013 às 05:00.
Atualizado em 25/04/2022 às 13:47

A deficiência é um conceito relativo. Primeiro, conforme se explicita na “Convenção Internacional Sobre os Direitos Das Pessoas Com Deficiência”, ela é uma condição relativa às características do ambiente. Em um ambiente com muitas barreiras, as pessoas têm suas deficiências agravadas, ao passo que, em um ambiente acessível, as pessoas têm equiparadas suas possibilidades de inclusão e participação social.

Mas não apenas esta interação com o meio relativiza a deficiência. Ela também deixa de ser absoluta por ser atribuída e legitimada de acordo com um referencial que é compartilhado pela maioria dos indivíduos. Se o ser humano é equipado com cinco sentidos, aquele que dispõe de quatro sentidos possui uma deficiência sensorial. Se a maioria de nós somos dotados da capacidade de caminhar, aqueles que não podem fazê-lo têm uma deficiência física.

Desse modo, uma pessoa só é considerada como tendo uma deficiência quando, em função de algum impedimento, se distancia da condição experimentada por grande parte dos indivíduos. Imaginemos uma situação hipotética e divertida, que nos transporte para outro mundo e nos ajude a entender este princípio. . Suponha que você nascesse em um planeta imaginário onde vivessem seres humanos pertencentes a uma espécie diferenciada da nossa , e, nesse mundo, todos os indivíduos dessa espécie possuíssem uma curiosa característica: a capacidade perceptiva de aferirem o tempo com a máxima precisão, sem dependerem de relógio ou de qualquer dispositivo que lhes desse esta medida. Nesse mundo imaginário, as pessoas simplesmente conseguem saber exatamente quantas horas e quantos minutos se passaram após a realização de uma tarefa, e, por possuírem esta capacidade, sabem administrar o tempo de forma extraordinária. Nunca se atrasam, nunca deixam de cumprir quaisquer prazos, e, de forma alguma se enganam sobre a quantidade de tempo necessária para realizarem algo. Quando acordam, sabem exatamente que horas são, sem utilizarem nenhum recurso, assim como sabem responder a esta pergunta a qualquer momento.

Suas mentes já estão equipadas com essa capacidade de mensurar o tempo, de modo que, desde pequenas, elas aprendem a aplicar esta habilidade em suas rotinas diárias. Então imagine que você adentrou neste mundo e descobriu que a você falta uma capacidade perceptiva essencial. Você, por não pertencer a esta espécie de ser humanos mais evoluídos, não pode precisar quantas horas e minutos se passaram, a menos que você contasse com uma ferramenta que fosse especificamente desenvolvida para atender à sua necessidade. O máximo que você consegue é estimar a passagem do tempo, mas ainda assim o faz com muito esforço, porque fica sujeito a fatores de motivação ou ansiedade, que influem nesta aferição. Suponha que alguém solicite a você que compareça a uma reunião dentro de duas horas e quinze minutos. Você, na ausência de um recurso especializado, será incapaz de atender a esta demanda com autonomia, e terá no mínimo de depender de outras pessoas que o ajudem a cumprir esta tarefa.

Então você se pergunta como fará para se orientar no tempo, e, em meio às demandas cotidianas, se sente inabilitado para se sair de muitas situações. Além disso, todos acham você um ser muito estranho, apenas porque você, sendo incapaz de medir o tempo com precisão, vive atrasado. Em uma atitude solidária, alguém inventa um dispositivo especialmente desenvolvido para você, que permite mensurar o tempo, com a ajuda de um display que mostra números, representando as horas e os minutos.

Certamente, muitos lhe perguntarão o que é isto que você usa, e você aprenderá que se trata de uma Tecnologia Assistiva, desenvolvida para suprir sua dificuldade. Todos ficarão muito admirados, e pensarão como seria difícil viver sem poder mensurar, por conta própria, a passagem de cada minuto.

“Ele tem deficiência cronológica”, dirão os especialistas.

E você mesmo se considerará assim: pessoa com deficiência cronológica.

Juntamente com outras pessoas que nasçam na mesma condição, haverá, neste mundo hipotético, um movimento pela garantia de mais acessibilidade, reivindicando-se a colocação de relógios nas empresas e em todo e qualquer ambiente público.

É assim, portanto, que se caracteriza uma deficiência, uma condição que não consiste em um déficit do indivíduo, mas tão somente em uma diferença a ser acolhida por um mundo que, a princípio, foi concebido para viver sem ela.

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