Para quem achava que a tal “contabilidade criativa” havia saído do governo dentro da mala do ex-ministro da Fazenda Guido Mantega, um aviso: ela continua lá. E pior ainda, sobre a mesa do sucessor de Mantega.Pois é o próprio Joaquim Levy quem anda falando pelos corredores do Planalto sobre uma tal “banda” para a meta do superávit primário, mais ou menos nos mesmos moldes da que existe para a meta da inflação oficial.Em outras palavras, ao invés de perseguir um superávit “fixo”, a equipe econômica poderia passar a a trabalhar com um número “maleável”. Quais seriam os limites mínimos e máximos desse número, contudo, ainda não nos foi revelado (e podem nem ser, já que tudo ainda são projetos de conversas).Particularmente, acho a ideia um retrocesso e um perigo. Retrocesso porque tem potencial para enterrar, por vias tortas, a responsabilidade fiscal. Um perigo porque pode abrir precedente para que qualquer coisa que hoje é fixa se torne maleável, ao bel prazer do governo - e se vale para o Planalto, há de valer também para as sedes dos governos estaduais e, porque não, municipais. O que a equipe econômica está propondo, em resumo, é o seguinte: nossa meta de superávit primário, a partir de agora, passará a ser uma economia de, por exemplo, 2% do PIB - com uma margem de tolerância de, digamos, 1 ponto para mais ou para menos. Ou seja, qualquer coisa entre 1% e 3% está ótimo.Evidentemente, é um recurso “criativo” para quando não se cumprirem as metas de economia de recursos do governo (a banda “para mais” é, naturalmente, mero exercício de imaginação). E surgiu agora justamente porque, com a crise se agravando e secando os cofres, já ficou mais do que evidente que a meta de superávit proposta para este ano não terá como ser cumprida - daí as constantes revisões da equipe econômica sobre o assunto.Por outro lado, é uma boa desculpa para o fracasso. Não cumprimos a meta, mas estamos dentro da “margem de tolerância”, e portanto está tudo muito bem.Não está não. O mínimo que se espera de um governo é transparência, e muito mais quando se trata do dinheiro público (nunca é demais lembrar que o governo não produz nada, apenas arrecada recursos de seus cidadãos e tem o dever de administrá-los com competência e lisura). Se há transparência, não é preciso apelar para bandas; basta levar em consideração, ao se fazer projeções como a do superávit primário, a realidade da economia: se ela vai mal, reduz-se essa meta. Se ela vai bem, permite-se falar em um percentual maior.Querer usar o dado para dar uma falsa impressão de segurança, de que a crise não é tão grande como insistem todos esses analistas pessimistas que se recusam a ficar calados, é pura e simplesmente uma mentira deslavada.Assim como é uma mentira estabelecer metas de inflação tão fantasiosas que nem mesmo as bandas resolvem - a desse ano, por exemplo, todos já sabem que ultrapassará o limite do teto ampliado, e será muita sorte se não atingir os dois dígitos até dezembro.São coisas diferentes, é claro; a inflação é muito mais variável do que o superávit. Depende de fatores sazonais, climáticos e internacionais, entre outros. Mas o superávit é mais duro; ele depende basicamente da vontade do governo de economizar e da situação geral da economia do País, que leva mais tempo para mudar de direção - e portanto é mais previsível. Se, repito, houver transparência e respeito pela verdade.Bandas para os superávit são dispensáveis. Elas podem ser substituídas pela realidade - basta estabelecer uma meta factível, ainda que irrisória. Mas isso seria admitir que a economia está em frangalhos, algo que nenhum governo, muito menos este, gostaria de fazer. Melhor continuar propondo metas inatingíveis e depois ir revendo essas metas mais e mais para baixo, como se fosse algo inesperado ou surpreendente. E há, claro, a questão da liberdade com relação à responsabilidade fiscal - que não pode se resumir apenas ao resultado global das contas, ou seja, ao gastar apenas o que for condizente com o que se arrecada. Responsabilidade fiscal também inclui passar o recado de que metas existem para serem cumpridas, sem subterfúgios ou criatividades: dado um número a ser atingido, que se faça o melhor para atingí-lo, sem precisar que ele seja esticado, comprimido ou contido em margens de tolerância. Pequenas variações - e por pequenas entendo pontos percentuais insignificantes - são parte do jogo. Mas variações de alto calibre são totalmente indesejáveis.Resta esperar para ver se a ideia vai ou não se tornar realidade, embora muita gente no governo (e fora dele) ande apostando que sim. Paciência: num País onde tudo é mais ou menos (ultimamente mais para menos do que para mais), faz sentido.