O cineasta alemão Werner Herzog é um gigante em sua arte. Determinado a investigar as profundezas da alma humana — e tudo o que ela contém de mais sombrio e esplêndido —, vem, desde a década de 60, construindo uma notável filmografia com longas de ficção e documentários, além de documentários com toques ficcionais.Esse conjunto pode ser heterogêneo e controverso, mas é de uma originalidade muito rara entre os realizadores contemporâneos. Em O Homem Urso (2005), Herzog filmou a utopia tresloucada de Timothy Treadwell, um maluco — para falar em português claro — que declara seu rompimento com o resto da humanidade indo viver em meio aos temíveis ursos-pardos no Alasca, numa ilusão de harmonia interespécies que, claro, não termina nada bem para Treadwell.Em O Enigma de Kaspar Hauser (1974), o diretor parte da história real de um homem que passou a infância e boa parte da adolescência trancado em um estábulo, e não aprendera a falar nem a andar. E no singular — para dizer o mínimo — Lições da Escuridão (1992), registrou imagens dos campos de petróleo ardendo em chamas no Kuwait, logo após a Guerra do Golfo, para depois descontextualizá-las, eliminando qualquer referência espacial e temporal, com o objetivo de concentrar-se nas imagens em si e no que elas têm de apocalíptico.A empreitada mais emblemática — e ambiciosa — de Herzog, no entanto, talvez seja Fitzcarraldo (1982), no qual um enorme barco a vapor é puxado montanha acima, no meio da amazônia peruana. Não há efeitos especiais — a embarcação de 320 toneladas é, de fato, por meio de um sistema de roldanas e cabos de aço e de um esforço humano gigantesco, levada morro acima para ilustrar a ambição do irlandês Brian Fitzgerald (Klaus Kinski), um barão da borracha que tem o sonho de construir uma ópera no meio da selva.Durante as filmagens (entre 1979 e 1981), o diretor manteve um diário, que sai no Brasil sob o nome de Conquista do Inútil (Martins Fontes, 298 págs., R$ 45,00). Como o próprio diretor anuncia no prefácio, o livro se atém menos às filmagens em si do que à descrição de suas próprias “paisagens internas nascidas do delírio da selva”.A selva, um lugar que Herzog encara como algo indomável, quase monstruoso e aberrante, impiedoso e capaz de abater fracos e fortes na mesma medida. Um lugar abandonado “por Deus em sua ira”, onde a criação divina não foi concluída e onde os pássaros não cantam, mas “gritam de dor”. Um lugar abjeto, um inferno onde o cineasta se enfurnou por anos a fio porque tinha um propósito inabalável alimentado por uma visão: a de um “grande barco a vapor atravessando uma montanha”.E é com resignação que o diretor aceita esse delírio, esse sonho que, no fundo, não é do protagonista Fitzcarraldo, mas dele próprio. E enfrenta a mata amazônica, os mosquitos, o calor, a precariedade, infecções, chuvas torrenciais, estiagens, problemas logísticos, falta de dinheiro. Tem que lidar com os egos da equipe — especialmente o de Klaus Kinski, ator cujo enorme talento era proporcional ao seu temperamento explosivo. Ele era conhecido pelos surtos que tinha no set, deflagrados por motivos banais como a qualidade da comida servida no acampamento ou a voz esganiçada de uma peruana que integrava a equipe. Aliás, o incômodo provocado por Kinski é tamanho que, a certa altura, um dos índios escalados para participar das filmagens se oferece para matá-lo. Herzog, que mantinha uma relação de amor e ódio com o conterrâneo e era uma das poucas pessoas que sabia como lidar com ele, gentilmente declina da oferta.Enfim, os problemas e reveses que pontuam as filmagens e as provações enfrentadas pelo diretor são tamanhas que tem-se a impressão que dali não vai sair filme nenhum. Ou o rio está baixo demais, e o barco não tem condições de ser movido para dar início à penosa jornada morro acima; ou as águas subiram muito por causa das chuvas, e a embarcação certamente será destroçada pela força da correnteza. Os dias se passam nesse movimento pendular, e pouco acontece. Mas Herzog está agarrado ao seu sonho com “a fúria desvairada de um cão que cravou os dentes na perna de um veado já morto” e se recusa a largá-lo. A equipe, por fim, consegue levar o barco de centenas de toneladas morro acima para, semanas depois, fazê-lo descer encosta abaixo, até o outro rio.A tarefa a que Herzog se empenhou a realizar a qualquer custo estava concluída, mas, assim como às vezes acontece quando nos desembaraçamos de algo que nos custou montanhas de energia e preocupação, o diretor, ao ver a embarcação finalmente voltar à água, do outro lado do morro, não sentiu nada. Nem dor, nem alegria, nem alívio. Como se, desta vez, perscrutasse as profundezas de sua própria alma e encontrasse algo que está além da própria linguagem. Como se, finalmente, se desse conta de que havia conquistado o inútil.