ig - Rodrigo Moraes (CEDOC)
Li recentemente na internet uma notícia sobre sebos paulistanos que vendem livros com fins decorativos. Os clientes, interessados em dar a determinado ambiente — escritórios, salas de estar etc. — um ar respeitável, intelectualizado, compram livros usados “por metro” para preencher estantes e, talvez, granjear o espanto respeitoso de terceiros. Em um dos sebos, diz a reportagem, o preço da metragem varia de R$ 150 a R$ 250, dependendo da qualidade do acabamento dos volumes. O texto acrescenta que os “decoradores costumam preferir livros antigos, com aparência gasta”, como se as marcas do tempo que esses volumes carregam conferissem aos seus novos donos um ar de herdeiros de uma linhagem de eruditos e catedráticos.
Fiquei inicialmente tentado a escrever sobre a superficialidade e a futilidade dessa construção de um mundo de aparências: livros cenográficos para revestir e ocultar, como uma casca, a indigência cultural de quem os compra. Mas percebi que estaria caindo no lugar-comum e que, em seguida, eu certamente teria de lamentar o fato de o Brasil ser um país de poucos leitores, de que, enquanto na Europa a taxa de leitura por habitante é de x volumes por ano, por aqui esse índice é incomparavelmente menor etc.
Mas pensei, pensei, e acabei me rendendo ao fato de que as bibliotecas, mesmo as “cenográficas” abordadas na reportagem, exercem um antigo fascínio sobre nós. Mesmo que esse fascínio possa ter um quê de opressor, como se o peso do conhecimento e a austeridade dos autores — uma austeridade de certa forma agravada pelo fato de muitos deles estarem mortos há muito tempo — nos humilhassem e zombassem de nossa pequenez e de nossa ignorância.
Mas cometo uma injustiça ao retratar as bibliotecas como monumentos monolíticos a um deus inacessível e impiedoso com leigos como eu, como a maioria de nós. Porque lembro de uma vez que estive na casa de Norman Gall, jornalista, pesquisador e figura de proa do Instituto Fernando Braudel, em São Paulo. Eu era colega de seu filho, Jon, em um curso de tradução na Capital, e este me convidou para jantar no apartamento deles, em Higienópolis. O lugar era amplo, como cabe aos antigos prédios residenciais daquela região da cidade, e a sala era dominada por estantes de livros que ocupavam quase que todo o pé-direito da velha construção. Não me atrevi a perguntar ao pai sobre a natureza de sua relação com todos aqueles volumes, mas o filho me confidenciou: certa vez um visitante, talvez num tom mal disfarçado de desafio, perguntara a Norman se lera todos eles. Serenamente, o anfitrião pediu ao interlocutor que escolhesse, aleatoriamente, um dentre os milhares de livros da biblioteca. Aberto em uma página qualquer, o volume revelou anotações à margem, prova de que havia sido manipulado e examinado. E isso certamente se repetiria com outro livro que tivesse sido retirado ao acaso da estante, e com outro, e outro. Prova de que não eram meros adornos para impressionar os viventes, de que a biblioteca cumpria sua função de servir ao conhecimento.
Me lembrei também de um episódio de infância que, de certa forma, remete à postura irreverente, saudavelmente utilitária de Norman Gall em relação à sua vasta coleção de livros. Na modesta, mas respeitável, biblioteca da casa de meus avós, me encantava — como devia encantar crianças nos tempos d’antanho — uma velha coleção intitulada, com a grafia de antigamente, Thesouros da Juventude. Eram livros com uma miríade de assuntos voltados a meninos, enfocando as “maravilhas” científicas e tecnológicas do começo do século 20. Em uma seção chamada Cousas que Podemos Fazer, instruções de como montar, com madeira balsa e chumbo, um submarino de brinquedo que submergia e voltava à tona. Encantado com aquilo, pedi à minha avó Zilah que me emprestasse o livro: queria tentar construir a embarcação em casa. Sem a menor cerimônia, ela arrancou as páginas que continham as instruções e as me entregou. Me espantei com aquilo, com o fato da subtração das páginas configurar praticamente uma mutilação de uma obra que tinha muito de relíquia. Mas hoje vejo que sua postura, saudavelmente sem-cerimônia, traduzia a compreensão de que os livros, antes de mais nada, existem para ensinar, entreter e formar.